A educação em casa | ||
É possível que a batalha judicial da família Nunes pelo direito de ensinar seus filhos em casa seja um fenômeno que não tenha a dimensão e a transcendência que parece. Todavia, o objetivo deste trabalho é fomentar o debate sobre um tema de interesse social. Muito difundida nos Estados Unidos, a prática do ensino domiciliar também é utilizada em países como a Austrália, África do Sul, Canadá, Reino Unido, Nova Zelândia, México e Japão. Embora o fenômeno do homeschooling tenha se consolidado apenas na década de 1980, a prática da educação em casa remonta séculos anteriores, sendo utilizada pela sociedade ao longo da história. Somente com a introdução das políticas estadistas, no início do século XIX, é que a educação adotou um regime de "monopólio", seja pela figura do Estado, da igreja ou de instituições privadas. Em linhas gerais, os educadores domésticos são | divididos em três grandes grupos: os que são motivados por razões religiosas e morais; os que têm razões filosóficas ou pedagógicas; e os que optam pelo ensino doméstico devido aos problemas que os filhos vivenciaram na escola, tanto em nível acadêmico como social - por exemplo, a violência escolar, mais conhecida como bullying. Neste sentido, a adoção do ensino domiciliar permite combinar uma formação acadêmica de qualidade com um completo desenvolvimento moral. Os defensores da prática justificam que as crianças não só aprendem mais e melhor, senão que são educadas à luz das convicções morais de seus pais. Defendem que uma sociedade "livre, justa e igualitária" requer indivíduos livres, e a liberdade passa por reforçar os vínculos voluntários e naturais, como a família, frente às garras | totalizadoras e às intromissões sem sentido do Estado. O artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece que "aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o gênero de educação a dar aos filhos." Por conta disso, assumir a essência da educação como um assunto de exclusiva responsabilidade familiar, não estatal, implica fazer efetivo o direito inviolável dos pais de decidir sobre a educação que querem para seus filhos, sem que a interferência arbitrária do Estado lhes obrigue a financiar um sistema educativo em que não creem. Pior, que julgam falido. O pomo da discórdia é que a legislação brasileira não reconhece essa modalidade de educação, aceitando-a apenas para grupamentos que, por cultura ou atividade profissional, levam uma vida mutante - com a ressalva da obrigatoriedade de exames em instituições oficiais. |
A legislação brasileira | ||
O direito à educação é uma exigência constitucional. O artigo 227 da CF de 1988 determina que: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Já o Código Civil, em seu artigo 1.634, estabelece que compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores, dirigir-lhes a criação e a educação. Isso, no entanto, não seria fundamento legal razoável para justificar a interferência direta dos pais sob o regime ditado pelo Estado. Nos termos do artigo 246 do Código Penal, o abandono intelectual é um crime cometido pelos pais que deixarem de proporcionar aos seus filhos a instrução primária, consumando-se no momento em que os pais não matriculam os filhos, na idade escolar, nos estabelecimentos de ensino da rede pública ou da rede particular. Ressalte-se, pois, que com a nova Emenda Constitucional nº 59/09, houve profundas alterações no que concerne à "idade escolar". Por sua vez, o artigo 208 da Constituição Federal diz que o Estado tem o dever de garantir o Ensino Fundamental obrigatório e gratuito. O dever do Estado é construir e prover vagas nas escolas. O crime de abandono intelectual, portanto, configura-se quando os pais, sem justa causa, deixam de garantir a instrução primária dos filhos em idade escolar. Havendo escolas, a obrigação dos pais é mandar os filhos à escola. Em caso de ausência de vagas e escolas, é | possível recorrer ao Ministério Público, uma vez que, nos termos do artigo 129 da CF, uma das funções do MP é a defesa dos interesses coletivos e dos interesses individuais homogêneos; a escola é um interesse individual homogêneo. Importante ressaltar também o que dispõe o artigo 55 do ECA , bem como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que estabelece a obrigatoriedade da matrícula de crianças em idade de cursar o ensino fundamental regular. Assim, de acordo com a legislação vigente, nada justifica ou mesmo legitima a prática da educação domiciliar no Brasil. Precedente jurisprudencial - O Superior Tribunal de Justiça já havia decidido, em caso semelhante, não existir previsão constitucional e legal que reconheça ou autorize os pais a ministrarem aos filhos disciplinas do Ensino Fundamental sem controle do poder público. Em decisão proferida em 2002, mas publicada apenas em 2005, a 1ª Turma do STJ negou segurança a um casal que pleiteava ministrar aulas aos filhos em casa. Vejamos: MANDADO DE SEGURANÇA - ENSINO FUNDAMENTAL - CURRICULO MINISTRADO PELOS PAIS INDEPENDENTE DA FREQUÊNCIA À ESCOLA - IMPOSSIBILIDADE - AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO. (...) Inexiste previsão constitucional e legal, como reconhecido pelos impetrantes, que autorizem os pais ministrarem aos filhos as disciplinas do ensino fundamental, no recesso do lar, sem controle do poder público mormente quanto à frequência no estabelecimento de ensino e ao total de horas letivas indispensáveis à aprovação do | aluno. Segurança denegada à míngua da existência de direito líquido e certo. (STJ - MS 7407/DF - Acórdão COAD 132172 - Rel. Min. Francisco Peçanha Martins - Publ. em 21-3-2005) A decisão, porém, também contribui para o debate, uma vez que não foi unânime. Em voto vencido, o ministro Franciulli Netto justifica: Não há, pois, razão de temer que a solução deste caso crie precedentes, uma vez que a sentença compõe litígios para casos concretos. Se outras famílias apresentarem condições iguais ou assemelhadas à família dos impetrantes, ao invés de temer-se o precedente, deve-se enaltecê-lo. Impende realçar que o importante é o respeito à liberdade de escolha dos pais. Se a eles é dado o direito de escolher entre escolas públicas e particulares, por que privá-los do direito de educar seus próprios filhos, submetendo essa educação às avaliações oficiais de suficiência? Quer-se também dizer que, se existirem pais mais qualificados do que os impetrantes, a esses não se pode negar, igualmente, o direito de opção, no sentido de enviarem seus filhos à escola, se assim entenderem melhor para a prole. Temos, com o caso em epígrafe, um exemplo concreto de valores distintos entre o que é legal e o que é do direito, saltando aos olhos que nem sempre a obediência cega ao que determina a lei atinge o conceito de justiça. Somente em casos excepcionais, como em caso de acidente ou determinação médica, é permitida a concessão de educação domiciliar, desde que fixada por período breve. Assim, a ausência de matrícula em ensino regular fundamental caracteriza abandono intelectual. |
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MATRÍCULA DE ALUNO MENOR DE 18 ANOS - ART. 37 DA LEI Nº 9.394/96 - VIOLAÇÃO A NORMA LEGAL EXPRESSA - RESOLUÇÃO Nº 230 DO CONSELHO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO - POSSIBILIDADE DE CURSAR ENSINO MÉDIO EM REGIME DOMICILIAR. Tratando-se de adolescente menor de 18 anos, a concessão da medida só deve ocorrer em casos excepcionais, quando não há alternativa para que o mesmo dê continuidade a seu estudo. No caso em tela, verifica-se a possibilidade de o autor cursar o ensino médio em regime domiciliar, bastando que o mesmo comprove seu transtorno psíquico e sua impossibilidade de comparecer às aulas. (TJ-RS - Ag. Int. 70021769534 - Rel. Des. Claudir Fidelis Faccenda - Publ. em 14-11-2007) ABANDONO INTELECTUAL - EVASÃO ESCOLAR. (...) Resta provado, ante o conjunto da prova ter a ré praticado o delito denunciado, de abandono intelectual, omitindo-se no seu dever legal em manter seu filho estudando, tendo a vítima deixado de frequentar a escola na segunda série do ensino fundamental, exatamente no período em que preponderava a vontade dos pais. (TJ-RS - Rec. Crim. 71001667039 - Relª Juíza Angela Maria Silveira - Publ. em 10-7-2008) JUSTIÇA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE - EDUCAÇÃO DOS FILHOS - CONCEITO. Promover a educação dos filhos é dever inerente ao pátrio poder, assim como a subordinação dos filhos ao mando paterno. Por educação compreende-se o esforço tendente a promover o desenvolvimento físico, intelectual e moral do indivíduo e ajustá-lo às normas comuns de comportamento. A transição | do indivíduo para o cidadão é fruto das práticas educativas, implícitas no instituto em estudo. O Código Penal, art. 246, reprime o crime de abandono intelectual, informado pelo fato de deixar, sem justa causa, de prover a instrução primária de filho em idade escolar... Fora de dúvidas que a subordinação do filho ao mando paterno se inclui no curso ativo da educação. (TJ-SP - Ap Cív 28180- 0/5 - Acórdão COAD 76534 - Rel. Des. Pereira da Silva - Julg. Em 29-8-1996) Nas lições de Ivan Illich (in Sociedade sem Escolas), há que se admitir que somos frequentemente "escolarizados" a confundir ensino com aprendizagem, níveis de progresso com educação e diplomas com competência. Há pessoas sem instrução formal que têm muito mais conhecimentos do que pessoas com cursos superiores. Como diz a experiência popular, não há melhor escola que a vida. Apesar da repercussão do Caso Nunes, está parado no Congresso Nacional projeto de lei de autoria dos deputados Henrique Afonso (PT-AC ) e Miguel Martini (PHS-MG) que trata do assunto. O PL modifica a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e obriga o Ministério da Educação a reconhecer o ensino aplicado por pais ou responsáveis fora da sala de aula. Apesar de pertinente e necessário, o projeto enfrenta resistência da "bancada da educação" na Câmara Federal. Destaque também para a Proposta de Emenda à Constituição 444/09, do deputado Wilson Picler (PDT-PR), que autoriza explicitamente a prática da educação domiciliar para o aluno entre 4 e 17 anos de idade. | Destarte, temos que o Caso Nunes nos faz refletir sobre um outro ponto também debatido na Teoria Geral do Direito: a aplicação da denominada "lei injusta" ou "ilícito legal", em detrimento ao que o direito natural entende como justo. Salutar neste momento de reflexão as lições do jurista Atahualpa Fernandez (in, Constituição, Lei e "ilícito legal"): quando as normas negam conscientemente a vontade de Justiça, quando os princípios, os direitos e as garantias consagradas são arbitrariamente violados, carecem tais normas de legitimidade e validez, pois não se pode conceber o direito, inclusive o direito legislado, de outra maneira que não esteja destinado a servir a Justiça. E quando a injustiça não é oportunamente eliminada pelo legislador, corresponde ao operador do direito o dever e a coragem de deixar de efetivá-la, de negar o pretenso caráter jurídico das normas arbitrariamente impostas. Esse o papel que cabe ao operador do direito na sua práxis hermenêutica: de um operador valente a quem a dificuldade ou o esforço hermenêutico não lhe impedem de empreender algo justo ou valioso, nem lhe fazem abandonar o propósito à metade do caminho, isto é, que atua apesar da dificuldade, e guiando sua ação pela Justiça, que é o último critério da valentia. Janaína Rosa Guimarães Advogada especialista em Direito Civil e Processo Civil; Consultora Jurídica responsável pela coordenação do serviço de Suporte de Pesquisa ADV; colaboradora e membro da Equipe de Redação do produto ADV - Advocacia Dinâmica, da COAD. |