domingo, 4 de julho de 2010

É necessário manter os filhos na escola...

> Revista Jurídica, Edição 49
Educação domiciliar e poder público
A quem pertence o direito de escolher a educação dos filhos?
Janaína Rosa Guimarães
O juizado Especial Criminal da Comarca de Timóteo, em Minas Gerais, condenou o casal Cléber de Andrade Nunes e Bernadeth de Amorim Nunes por abandono intelectual de dois filhos adolescentes. Os meninos, hoje com 16 e 17 anos, foram tirados da escola regular há aproximadamente quatro anos, depois de concluírem a 5ª e a 6ª séries, e inseridos em um método apropriado de ensino em casa, conhecido como homeschooling. O sistema de educação informal, que tem cerca de um milhão de adeptos nos Estados Unidos e muitos outros países europeus, não possui amparo legal na legislação brasileira. Na sentença proferida em 22 de fevereiro de 2010, o juiz Eduardo A ugusto Gardesani Guastini admitiu que o tema demanda "fervorosa" discussão entre aqueles que defendem o chamado homeschooling e os que se mostram contrários à metodologia. Não obstante ter mencionado que o Ministério da Educação tenha um dos piores sistemas educacionais do mundo e que o Brasil, nas avaliações internacionais de educação, figure sempre entre os últimos colocados, o magistrado destacou que a legislação é expressa em vetar tal prática no Brasil. Para o juiz Guastini, a atual Constituição Federal cuida da educação "como algo que transcende o implante de conhecimento: é uma forma de preparo para o exercício da cidadania".

O magistrado cita, também, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), que torna obrigatória a matrícula no Ensino Fundamental, mesma determinação constante no artigo 55 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECACA). Assim, para o período correspondente ao ensino fundamental, a frequência em sala de aula passa a ser obrigatória.

Entenda o caso - Os pais, Cléber e Bernadeth Nunes, passaram a responder processos na esfera cível e criminal depois que foram denunciados por vizinhos ao Conselho Tutelar. O "crime": passaram a educar os filhos Jônatas e Davi em casa. Uma das razões que levaram os pais a retirar os filhos da escola foi a insatisfação com o ensino regular. O Ministério Público entrou no caso e, ao argumentar que a decisão dos pais era desprovida de amparo legal, acusou o casal de abandono intelectual, sugerindo que os adolescentes passassem por uma avaliação para testar se foram
privados de educação por meio da atitude dos pais. Submetidos aos exames de conhecimento, os adolescentes demonstraram índice satisfatório de aprendizado, sendo aprovados, inclusive, em vestibular para uma faculdade de Direito. Entretanto, a avaliação positiva dos filhos não foi suficiente para absolver os pais.

Na ação cível, o casal foi condenado ao pagamento de multa, bem como restabelecer a frequência dos filhos à escola. Por motivos óbvios, os pais ignoraram essa ordem judicial, proferida em dezembro de 2007. Já na ação criminal, com sentença proferida em 2010, o juiz Eduardo Augusto Guardesani Guastini estipulou uma multa simbólica: Cléber terá que pagar multa equivalente a 1/10 do salário mínimo (R$ 51) e Bernadeth, 1/30 do salário (R$ 17). Não obstante o valor irrisório da condenação, temos que o caso levanta uma discussão importante: diante do Estado Democrático de Direito, não teriam os pais o direito de escolher qual o melhor método para a condução da educação dos seus filhos? Em sendo a educação um dever do Estado, caberia ao Poder Público estabelecer e impor todas as regras inerentes à aplicação do ensino no Brasil?
A educação em casa
É possível que a batalha judicial da família Nunes pelo direito de ensinar seus filhos em casa seja um fenômeno que não tenha a dimensão e a transcendência que parece. Todavia, o objetivo deste trabalho é fomentar o debate sobre um tema de interesse social. Muito difundida nos Estados Unidos, a prática do ensino domiciliar também é utilizada em países como a Austrália, África do Sul, Canadá, Reino Unido, Nova Zelândia, México e Japão. Embora o fenômeno do homeschooling tenha se consolidado apenas na década de 1980, a prática da educação em casa remonta séculos anteriores, sendo utilizada pela sociedade ao longo da história. Somente com a introdução das políticas estadistas, no início do século XIX, é que a educação adotou um regime de "monopólio", seja pela figura do Estado, da igreja ou de instituições privadas. Em linhas gerais, os educadores domésticos são divididos em três grandes grupos: os que são motivados por razões religiosas e morais; os que têm razões filosóficas ou pedagógicas; e os que optam pelo ensino doméstico devido aos problemas que os filhos vivenciaram na escola, tanto em nível acadêmico como social - por exemplo, a violência escolar, mais conhecida como bullying.

Neste sentido, a adoção do ensino domiciliar permite combinar uma formação acadêmica de qualidade com um completo desenvolvimento moral. Os defensores da prática justificam que as crianças não só aprendem mais e melhor, senão que são educadas à luz das convicções morais de seus pais. Defendem que uma sociedade "livre, justa e igualitária" requer indivíduos livres, e a liberdade passa por reforçar os vínculos voluntários e naturais, como a família, frente às garras
totalizadoras e às intromissões sem sentido do Estado. O artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece que "aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o gênero de educação a dar aos filhos." Por conta disso, assumir a essência da educação como um assunto de exclusiva responsabilidade familiar, não estatal, implica fazer efetivo o direito inviolável dos pais de decidir sobre a educação que querem para seus filhos, sem que a interferência arbitrária do Estado lhes obrigue a financiar um sistema educativo em que não creem. Pior, que julgam falido. O pomo da discórdia é que a legislação brasileira não reconhece essa modalidade de educação, aceitando-a apenas para grupamentos que, por cultura ou atividade profissional, levam uma vida mutante - com a ressalva da obrigatoriedade de exames em instituições oficiais.
A legislação brasileira
O direito à educação é uma exigência constitucional. O artigo 227 da CF de 1988 determina que: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Já o Código Civil, em seu artigo 1.634, estabelece que compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores, dirigir-lhes a criação e a educação. Isso, no entanto, não seria fundamento legal razoável para justificar a interferência direta dos pais sob o regime ditado pelo Estado. Nos termos do artigo 246 do Código Penal, o abandono intelectual é um crime cometido pelos pais que deixarem de proporcionar aos seus filhos a instrução primária, consumando-se no momento em que os pais não matriculam os filhos, na idade escolar, nos estabelecimentos de ensino da rede pública ou da rede particular. Ressalte-se, pois, que com a nova Emenda Constitucional nº 59/09, houve profundas alterações no que concerne à "idade escolar". Por sua vez, o artigo 208 da Constituição Federal diz que o Estado tem o dever de garantir o Ensino Fundamental obrigatório e gratuito. O dever do Estado é construir e prover vagas nas escolas. O crime de abandono intelectual, portanto, configura-se quando os pais, sem justa causa, deixam de garantir a instrução primária dos filhos em idade escolar. Havendo escolas, a obrigação dos pais é mandar os filhos à escola. Em caso de ausência de vagas e escolas, é possível recorrer ao Ministério Público, uma vez que, nos termos do artigo 129 da CF, uma das funções do MP é a defesa dos interesses coletivos e dos interesses individuais homogêneos; a escola é um interesse individual homogêneo.

Importante ressaltar também o que dispõe o artigo 55 do ECA , bem como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que estabelece a obrigatoriedade da matrícula de crianças em idade de cursar o ensino fundamental regular. Assim, de acordo com a legislação vigente, nada justifica ou mesmo legitima a prática da educação domiciliar no Brasil. Precedente jurisprudencial - O Superior Tribunal de Justiça já havia decidido, em caso semelhante, não existir previsão constitucional e legal que reconheça ou autorize os pais a ministrarem aos filhos disciplinas do Ensino Fundamental sem controle do poder público. Em decisão proferida em 2002, mas publicada apenas em 2005, a 1ª Turma do STJ negou segurança a um casal que pleiteava ministrar aulas aos filhos em casa.

Vejamos: MANDADO DE SEGURANÇA - ENSINO FUNDAMENTAL - CURRICULO MINISTRADO PELOS PAIS INDEPENDENTE DA FREQUÊNCIA À ESCOLA - IMPOSSIBILIDADE - AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO. (...) Inexiste previsão constitucional e legal, como reconhecido pelos impetrantes, que autorizem os pais ministrarem aos filhos as disciplinas do ensino fundamental, no recesso do lar, sem controle do poder público mormente quanto à frequência no estabelecimento de ensino e ao total de horas letivas indispensáveis à aprovação do
aluno. Segurança denegada à míngua da existência de direito líquido e certo. (STJ - MS 7407/DF - Acórdão COAD 132172 - Rel. Min. Francisco Peçanha Martins - Publ. em 21-3-2005) A decisão, porém, também contribui para o debate, uma vez que não foi unânime. Em voto vencido, o ministro Franciulli Netto justifica: Não há, pois, razão de temer que a solução deste caso crie precedentes, uma vez que a sentença compõe litígios para casos concretos. Se outras famílias apresentarem condições iguais ou assemelhadas à família dos impetrantes, ao invés de temer-se o precedente, deve-se enaltecê-lo. Impende realçar que o importante é o respeito à liberdade de escolha dos pais. Se a eles é dado o direito de escolher entre escolas públicas e particulares, por que privá-los do direito de educar seus próprios filhos, submetendo essa educação às avaliações oficiais de suficiência? Quer-se também dizer que, se existirem pais mais qualificados do que os impetrantes, a esses não se pode negar, igualmente, o direito de opção, no sentido de enviarem seus filhos à escola, se assim entenderem melhor para a prole.

Temos, com o caso em epígrafe, um exemplo concreto de valores distintos entre o que é legal e o que é do direito, saltando aos olhos que nem sempre a obediência cega ao que determina a lei atinge o conceito de justiça. Somente em casos excepcionais, como em caso de acidente ou determinação médica, é permitida a concessão de educação domiciliar, desde que fixada por período breve. Assim, a ausência de matrícula em ensino regular fundamental caracteriza abandono intelectual.

MATRÍCULA DE ALUNO MENOR DE 18 ANOS - ART. 37 DA LEI Nº 9.394/96 - VIOLAÇÃO A NORMA LEGAL EXPRESSA - RESOLUÇÃO Nº 230 DO CONSELHO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO - POSSIBILIDADE DE CURSAR ENSINO MÉDIO EM REGIME DOMICILIAR. Tratando-se de adolescente menor de 18 anos, a concessão da medida só deve ocorrer em casos excepcionais, quando não há alternativa para que o mesmo dê continuidade a seu estudo. No caso em tela, verifica-se a possibilidade de o autor cursar o ensino médio em regime domiciliar, bastando que o mesmo comprove seu transtorno psíquico e sua impossibilidade de comparecer às aulas. (TJ-RS - Ag. Int. 70021769534 - Rel. Des. Claudir Fidelis Faccenda - Publ. em 14-11-2007)

ABANDONO INTELECTUAL - EVASÃO ESCOLAR. (...) Resta provado, ante o conjunto da prova ter a ré praticado o delito denunciado, de abandono intelectual, omitindo-se no seu dever legal em manter seu filho estudando, tendo a vítima deixado de frequentar a escola na segunda série do ensino fundamental, exatamente no período em que preponderava a vontade dos pais. (TJ-RS - Rec. Crim. 71001667039 - Relª Juíza Angela Maria Silveira - Publ. em 10-7-2008) JUSTIÇA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE - EDUCAÇÃO DOS FILHOS - CONCEITO. Promover a educação dos filhos é dever inerente ao pátrio poder, assim como a subordinação dos filhos ao mando paterno. Por educação compreende-se o esforço tendente a promover o desenvolvimento físico, intelectual e moral do indivíduo e ajustá-lo às  normas comuns de comportamento. A transição
do indivíduo para o cidadão é fruto das práticas educativas, implícitas no instituto em estudo. O Código Penal, art. 246, reprime o crime de abandono intelectual, informado pelo fato de deixar, sem justa causa, de prover a instrução primária de filho em idade escolar... Fora de dúvidas que a subordinação do filho ao mando paterno se inclui no curso ativo da educação. (TJ-SP - Ap Cív 28180- 0/5 - Acórdão COAD 76534 - Rel. Des. Pereira da Silva - Julg. Em 29-8-1996) Nas lições de Ivan Illich (in Sociedade sem Escolas), há que se admitir que somos frequentemente "escolarizados" a confundir ensino com aprendizagem, níveis de progresso com educação e diplomas com competência. Há pessoas sem instrução formal que têm muito mais conhecimentos do que pessoas com cursos superiores. Como diz a experiência popular, não há melhor escola que a vida.

Apesar da repercussão do Caso Nunes, está parado no Congresso Nacional projeto de lei de autoria dos deputados Henrique Afonso (PT-AC ) e Miguel Martini (PHS-MG) que trata do assunto. O PL modifica a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e obriga o Ministério da Educação a reconhecer o ensino aplicado por pais ou responsáveis fora da sala de aula. Apesar de pertinente e necessário, o projeto enfrenta resistência da "bancada da educação" na Câmara Federal. Destaque também para a Proposta de Emenda à Constituição 444/09, do deputado Wilson Picler (PDT-PR), que autoriza explicitamente a prática da educação domiciliar para o aluno entre 4 e 17 anos de idade.
Destarte, temos que o Caso Nunes nos faz refletir sobre um outro ponto também debatido na Teoria Geral do Direito: a aplicação da denominada "lei injusta" ou "ilícito legal", em detrimento ao que o direito natural entende como justo.

Salutar neste momento de reflexão as lições do jurista Atahualpa Fernandez (in, Constituição, Lei e "ilícito legal"): quando as normas negam conscientemente a vontade de Justiça, quando os princípios, os direitos e as garantias consagradas são arbitrariamente violados, carecem tais normas de legitimidade e validez, pois não se pode conceber o direito, inclusive o direito legislado, de outra maneira que não esteja destinado a servir a Justiça. E quando a injustiça não é oportunamente eliminada pelo legislador, corresponde ao operador do direito o dever e a coragem de deixar de efetivá-la, de negar o pretenso caráter jurídico das normas arbitrariamente impostas. Esse o papel que cabe ao operador do direito na sua práxis hermenêutica: de um operador valente a quem a dificuldade ou o esforço hermenêutico não lhe impedem de empreender algo justo ou valioso, nem lhe fazem abandonar o propósito à metade do caminho, isto é, que atua apesar da dificuldade, e guiando sua ação pela Justiça, que é o último critério da valentia. Janaína Rosa Guimarães Advogada especialista em Direito Civil e Processo Civil; Consultora Jurídica responsável pela coordenação do serviço de Suporte de Pesquisa ADV; colaboradora e membro da Equipe de Redação do produto ADV - Advocacia Dinâmica, da COAD.

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